1 – Mito x Realidade
Muito se fala que o exercício da advocacia em setores ligados ao jurídico contencioso de massa em escritórios, empresas ou órgãos públicos, seria uma atuação simplista, com causas de assuntos repetitivos, o que tornaria a rotina do advogado enfadonha e pouco estimulante no aspecto intelectual: “basta fazer um ‘Ctrl-C e Ctrl-V’ e pronto, prazo cumprido”. Incluem-se nestas atividades os escritórios e advogados que prestam serviços a bancos, planos de saúde, seguradoras, telefonias e prestadoras de serviços públicos, por exemplo.
Mas, será que a rotina de trabalho é tão simples assim?
O profissional da advocacia não precisa ser uma pessoa preparada/qualificada?
Minha experiência profissional como advogado e coordenador jurídico de contencioso em recuperação de crédito bancário mostrou que a realidade é bem diferente do imaginário popular. Para sobreviverem ao intenso ritmo de trabalho e atuar com competência e segurança, os profissionais jurídicos naturalmente desenvolvem várias qualidades que serão aprimoradas com o tempo, levando consigo essa experiência acumulada por toda a vida.
Sem preocupação de esgotar os aspectos que envolvem este campo de atuação profissional, passo a destacar algumas características do intenso trabalho jurídico/administrativo e das pessoas que o executam.
2 – Dinamismo e Versatilidade
Começo destacando a dinâmica de trabalho e a versatilidade da atuação jurídica.
Uma situação constante nos grandes escritórios e empresas é a possibilidade de mudança para outros setores, sendo necessária a adaptação a diversos modos de liderança e funções. Hoje você compõe a equipe de ações passivas do Banco X, mas amanhã pode integrar as ações ativas do Banco Y, ou o setor das audiências etc. É uma prática comum.
Desde já se percebe que é necessário ser uma pessoa dinâmica, com aptidão para construir um bom relacionamento com colegas de trabalho e servidores públicos.
É comum a existência de processos jurídicos e administrativos, ativos e passivos, que tramitam em comarcas distantes ou em diversos Estados, sendo exigida a atuação em várias “justiças”: Justiça Comum das capitais e comarcas de interior, Justiça Federal, Juizados Especiais Cíveis, Câmaras de Conciliação/Mediação/Arbitragem e órgãos governamentais/administrativos.
Temos que ser profissionais 4.0! A familiaridade com informática e tecnologia é fundamental. São diversos os sistemas de acompanhamento processual, formas de automação de serviços jurídicos, assim como existem vários sistemas de processo judicial eletrônico do Poder Judiciário (PJe, ESaj, ESTJ). Durante a pandemia da Covid-19 o uso da tecnologia foi intensificado, com as audiências e sustentações orais sendo realizadas por meio de plataformas virtuais.
No setor jurídico em ambiente corporativo de massa são centenas ou milhares de processos para acompanhamento, razão pela qual é muito importante fazer bom uso de ferramentas de tecnologia da informação para uma gestão segura em relação ao cumprimento dos prazos processuais e administrativos, bem como facilitar a identificação de atos a serem realizados para garantir celeridade processual, quando necessário (follow up).
Dentro deste contexto da versatilidade, acrescente-se que a maioria dos processos não termina com a prolação da sentença no primeiro grau, havendo a necessidade do manuseio de recursos processuais para efetiva defesa dos interesses do cliente, atuando o advogado, consequentemente, na primeira e segunda instâncias, além de agir também junto aos Tribunais Superiores.
Tratando dos recursos, o trabalho da(o) advogada(o) não se limita a fazer a peça processual, por vezes é necessária a apresentação de justificativa e autorização prévia do gestor jurídico, havendo a necessidade de adoção de medidas internas, por exemplo, solicitação ao financeiro para pagamento do preparo recursal, o que significa, na prática, agilidade na tomada de decisões.
Por fim, mas não menos importante, complementando a atuação nas três fases processuais (conhecimento, recursal e executiva), tem-se o procedimento de cumprimento de sentença, representando tanto a parte credora como o devedor de um título executivo judicial, desenvolvendo habilidades que somente a prática profissional poderá propiciar.
Em síntese, a advocacia é dinâmica! São novas ações para distribuição, despachos com juiz para obtenção de liminares, contestações, recursos, sustentação oral, contrarrazões, impugnações de cálculos, perícias, realização de audiências em grande quantidade, expedição e acompanhamento do cumprimento de mandados e segue o jogo!
3 - Rotina de Trabalho. Cumprimento de prazos
“O advogado perde a mulher e a mãe, mas não perde o prazo”. Essa frase que ouvi de Dr. Arthur Carvalho (advogado, jornalista, membro da Academia Pernambucana de Letras) na minha primeira entrevista de estágio em 1995 contém uma mensagem muito atual, bastando adaptar os personagens para a realidade do mercado de trabalho que conta, cada vez mais, com a positiva atuação das mulheres no universo jurídico.
O principal tormento da advocacia de massa é o cumprimento dos prazos processuais, que são muitos, diariamente, simples e complexos. A organização e a conexão entre funções administrativas e jurídicas é de vital importância, pois o protocolo de um prazo depende da perfeita integração das equipes, havendo vários atos conectados entre si, desde a identificação das publicações nos Diários Oficiais ou processos eletrônicos, à distribuição dos prazos aos respectivos responsáveis para o protocolo da peça.
Destaca-se na rotina diária do(a) advogado(a) a verificação dos prazos a cumprir, documentos, forma de protocolo, horário do fórum para eventuais diligências presenciais. É necessário ter um eficiente controle por agendamento eletrônico, pois a perda do prazo pode ensejar a responsabilização civil do escritório, que não tem responsabilidade de resultado, mas tem obrigação de exercer os meios necessários para obtenção do melhor resultado.
Para evitar sustos e perdas é primordial fazer um planejamento semanal verificando os prazos vincendos, antecipando pedidos de envio de documentos e reiterando aqueles requerimentos já realizados e ainda não atendidos.
O serviço não termina com o protocolo da peça processual, que muitas vezes é realizada por um setor/sistema específico, devendo ser feita a confirmação da realização do ato, bem como a atualização do sistema interno com as respectivas informações.
No âmbito da automação dos serviços a utilização de peças-modelos é normal, haja vista a repetição da matéria de direito, mas deve existir muito cuidado com a prática do “copiar-colar”, sendo necessário adaptar cada petição ao caso concreto. Tem que ler a peça pronta, entender a causa de pedir e o pedido com atenção às particularidades de cada ação.
Existem vários julgamentos contrários aos interesses da parte detentora de um bom direito em decorrência de falha na argumentação ou erro grosseiro no uso de modelos, sendo comum a rejeição de recursos por ausência de impugnação específica dos fundamentos da decisão.
Aspecto importantíssimo no jurídico contencioso de massa é a organização e divulgação de uma pauta de audiências (diárias e semanais), haja vista a necessidade de realização de atos anteriores, como a nomeação de preposto, preparação da respectiva carta de representação, habilitação do advogado que vai participar da audiência, análise da causa para formular eventual proposta de conciliação e preparação de defesas nos juizados especiais.
E tem mais! Não são “apenas” os prazos processuais. Existem os deveres internos, por exemplo, responder e-mails dos clientes e dos superiores hierárquicos, que não raras vezes consistem em extensos relatórios que exigem a obtenção de informações, leitura e análise de casos estratégicos (leia-se, casos complicados).
Zelar pela rápida resposta dos e-mails é um dos melhores caminhos para manter um bom relacionamento profissional. Manter a caixa de entrada organizada separando por clientes, pessoas, assuntos, é uma medida simples que ajuda bastante. Da mesma forma em relação aos arquivos pessoais no computador, organizando as pastas por clientes, tipo de peças, matérias, jurisprudências separadas por assuntos.
4 - Atributos do Gestor Jurídico
Em tempos de estatísticas, coleta de dados, jurimetria e processo civil de resultados, importante aliar a técnica jurídica com praticidade para resolução rápida de situações inusitadas e cumprimento de metas.
4.1. Formação da equipe de trabalho
A equipe de trabalho é a base para o sucesso do empreendimento jurídico. É comum que sejam estruturadas com advogados, estagiários, assistentes jurídicos, empregados e colaboradores em geral. Considerando os interesses e exigências do cliente pode ser necessária a atuação por meio de filiais ou rede de colaboradores/correspondentes.
Uma das missões do bom gestor é saber montar sua equipe de acordo com as necessidades de atuação. O conhecimento da qualificação técnica dos membros e a capacidade de identificar suas características pessoais para definir “quem faz o quê”, é um talento que certamente ajudará a obter os melhores resultados.
As pessoas mais extrovertidas para funções externas, enquanto os mais introvertidos se sentirão melhor nos serviços internos. Os organizados são ideais para preparação e controle da agenda de prazos, enquanto normalmente (mas não necessariamente) a oradora da turma terá mais facilidade para despachar com o juiz e realizar uma sustentação oral no Tribunal.
As equipes podem ser organizadas por tipo de ação (bem móvel, bem imóvel, ativas, passivas), por clientes, ações estratégicas de alto valor envolvido, critério geográfico (Estado, Região) ou por fases processuais (contestações, recursos, cumprimento de sentença).
O importante é identificar os responsáveis por cada movimento para garantir o controle e cumprimento tempestivo dos prazos. Ao estabelecer funções e fixar as respectivas responsabilidades demonstra-se a importância do trabalho de cada integrante para o bem coletivo, assim como as consequências negativas em caso de mau desempenho.
A competitividade do mercado de trabalho exige uma busca contínua por resultados positivos. Neste aspecto, as ferramentas de coaching podem ajudar a identificar quais são as maiores dificuldades ou necessidades da equipe, determinando os melhores caminhos para alcançar os objetivos.
Para um bom desenvolvimento dos trabalhos se faz necessária a adoção de procedimentos, mas sempre devem ser levados em consideração os aspectos geográficos e culturais de cada região/localidade. Lembro de um caso no ano de 2002, uma ação de busca e apreensão de veículo na Comarca de Humaitá (AM), tendo o correspondente me informado as dificuldades de acompanhamento do andamento processual: “Doutor, nessa comarca só chega de barco. Eu não sei como é que o banco financia um carro para alguém lá”.
Em outra oportunidade fui informado pelo estagiário que o telefone do fórum era um orelhão na frente do local. Pausa para explicar aos mais jovens que orelhão era um telefone público que existia nas ruas.
Lição aprendida: a realidade da matriz não é a mesma das filiais e dos colaboradores. Às vezes é preciso adaptar procedimentos.
Quanto aos colaboradores externos, sabe-se que o fiel cumprimento dos pedidos realizados é resultado do bom relacionamento entre o escritório e aquela pessoa que irá cumprir a diligência necessária. Pequenos atos podem fazer a diferença, tais como realizar o pedido de forma clara, organizada, em tampo hábil e cumprir com pontualidade os pagamentos dos honorários acertados e despesas antecipadas pelo colaborador.
4.2. Implantação do compliance
Compliance é um conjunto de medidas internas adotadas por um agente econômico (ex.: empresas), que permite prevenir ou diminuir os riscos de violação às leis que são aplicadas à sua atividade, sendo um importante instrumento para identificar de forma mais célere eventual quebra de regra legal.
Com a utilização dos programas de compliance, as empresas fortalecem o compromisso em relação aos valores, missão e objetivos da instituição, com especial atenção ao correto cumprimento da legislação.
Para a efetiva aplicação, faz-se necessário mais do que a mera adoção de procedimentos, pois se trata de uma verdadeira mudança na cultura corporativa. O programa de compliance apto a trazer bons resultados é aquele que deixa claro valores e objetivos comuns, levando aos colaboradores a mensagem sobre a importância de fazer a coisa certa, garantindo, assim, sua permanente atenção.
No caso do setor jurídico, pode ser necessária a atenção às regras de compliance tanto do cliente como do próprio escritório/empresa.
4.3. Motivação e Liderança
A manutenção e expansão das relações contratuais com o cliente são intimamente relacionadas com o cumprimento de metas estabelecidas, que serão alcançadas como resultado de uma atuação exemplar de todos os envolvidos. Para tanto, motivação e liderança são palavras fundamentais.
Manter a equipe motivada exercendo boa liderança é um importante desafio quando se trata da busca de resultados que dependem das relações humanas; resultados que dependem do nível de competência técnica/intelectual e do grau de comprometimento dos funcionários/colaboradores.
Neste mundo capitalista a remuneração geralmente é o primeiro aspecto a ser analisado. O valor do salário e critérios de atualização, participações em bônus/prêmios, futuras ascensões de cargo ou função são importantes aspectos que sempre são avaliados. Mas, assim como é verdade que dinheiro é muito importante, certamente não é tudo.
Um ambiente de trabalho saudável, com bom relacionamento entre os integrantes da equipe é um forte fator de influência nos resultados obtidos. A boa liderança é exercida demonstrando serenidade nos momentos de pressão, saber cobrar produtividade com respeito e consciência das dificuldades encontradas em campo. Equipe unida se esforça em estímulo à mútua colaboração que no final beneficiará toda a coletividade.
Existem inúmeras obras doutrinárias, artigos, revistas e vídeos que tratam do exercício da liderança e manutenção da motivação dos profissionais em ambiente corporativo, servindo duas clássicas obras de inspiração até os dias atuais: “A Arte da Guerra” e “O Príncipe”.
De “A Arte da Guerra”, um tratado militar escrito durante o século IV a.C. pelo estrategista conhecido como Sun Tzu, fixei na memória um conselho: os soldados devem ser tratados, primeiramente, com humanidade, porém, mantidos sobre controle e disciplina.
Sobre a humanidade já destaquei a importância do ambiente de trabalho saudável. Trazendo para o mundo corporativo, a disciplina é um fator essencial para garantir a realização das funções com nível de excelência necessário para plena satisfação do cliente e cumprimento de metas. O melhor controle, aquele que faz o resultado aparecer, é a disciplina de cada membro, o comprometimento pessoal de realizar bem as tarefas a si confiadas.
Falando da disciplina Bernardo Rezende (Bernardinho) disse numa palestra: se você não for capaz de executar com excelência as pequenas atribuições do seu dia, o que será das grandes?
A segunda obra sempre muito citada quando o assunto é liderança foi escrita por Nicolau Maquiavel em 1.513. “O Príncipe” contém a famosa indagação: o líder deve ser amado ou temido?
A resposta é: preferencialmente, os dois. O líder deve ser amado, mas também, temido. O comprometimento apenas pela admiração dá margem a uma acomodação no momento de realizar tarefas mais árduas, pode faltar aquele “gás a mais”. O comprometimento apenas pelo medo abre espaço para a formação de “grupinhos” que podem se unir para uma atuação “quanto pior, melhor” com o objetivo de afastar da equipe o temido coordenador por meio de maus resultados.
O bom gestor mantém um equilíbrio entre o respeito pela admiração e o respeito pelo medo decorrente da superioridade hierárquica.
A condução de uma conversa programada para expor problemas, propor soluções ou apresentar metas é um momento delicado nas relações interpessoais. O livro “Conversas Decisivas”, de autoria de Kerry Patterson (e outros autores) trata deste importante aspecto: a forma de iniciar e desenvolver um diálogo é fundamental para um bom desfecho. Se a mensagem inicial for recebida de forma negativa pelo destinatário, este assumirá uma postura defensiva e as chances de reconhecer uma ideia mais criativa ou eficaz que seja divergente de seu pensamento, será mínima.
Nem sempre a verdade está com o “chefe”, mas a decisão final é do coordenador/gestor, que irá responder pelos resultados - positivos e negativos - perante seus superiores hierárquicos ou diretamente ao cliente, razão pela qual todos devem respeitar a decisão tomada e fazer o melhor em respeito à boa-fé, ética profissional e bem-estar coletivo, ainda que entenda pessoalmente de forma diferente.
Na obra “O Líder Eficaz”, Cecília Whitaker Bergamini, cita os atributos de um líder:
- Características pessoais: adaptável às situações, alerta ao meio social, ambicioso, assertivo, cooperador, decisivo, confiante, tem autoridade, ativo, persistente, autoconfiante, tolerante ao stress, aceita responsabilidades.
- Habilidades: esperto (inteligente), conceitualmente habilidoso, criativo, diplomático e cuidadoso, verbalmente fluente, conhecedor das tarefas do grupo, organizado, gosta de influenciar os demais.
As qualidades do líder devem ser perceptíveis pelos membros da equipe e são os exemplos práticos que demonstrarão as virtudes certas nos momentos necessários. Se você quer pontualidade, seja pontual.
5 - Conclusão
O profissional da advocacia deve ser dotado de organização, dedicação, pontualidade, agilidade, iniciativa, criatividade, capacidade de bom relacionamento com pessoas, fazer bom uso das tecnologias e, claro, conhecimento jurídico de direito processual e do direito material pertinente ao campo de atuação.
Por isso, afirmo com segurança, a atuação em jurídico contencioso de massa é intensa e cansativa, mas repleta de aprendizados que, se bem assimilados, serão importantes para toda vida profissional e pessoal.
Referências
“A Arte da Guerra”. Sun Tzu.
“O Príncipe”. Nicolau Maquiavel.
“O Líder Eficaz”. Cecília Whitaker Bergamini
“Conversas Decisivas”. Kerry Patterson, Joseph Grenny, Ron Mcmillan, Al Switzler.
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