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  • Foto do escritorRicardo Kalil Lage

Contratos entre empresas e a incidência do Código de Defesa do Consumidor

Atualizado: 20 de fev.



1. Tese vencida. Teoria maximalista


É correto afirmar que a pessoa jurídica pode ser considerada consumidora e, consequentemente, receber a proteção do Código de Defesa do Consumidor (CDC), mas, também é verdade que não são em todas as situações que uma empresa é caracterizada como consumidora. Isso se deve pela existência de duas correntes jurídicas: teorias subjetiva-finalista e objetiva-maximalista.


Para a teoria maximalista, que já foi adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, no julgamento do Recurso Especial 329.587/SP (DJ 24.06.2002), a definição de consumidor é objetiva, conforme descrição do artigo 2º/CDC: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”.


O destinatário final seria o destinatário fático do produto, aquele que o retira do mercado e o utiliza. Verifica-se a aquisição ou utilização para destinação final, pouco importa se a necessidade a ser suprida com o consumo será de natureza pessoal ou profissional.


De acordo com a teoria objetiva-maximalista, o uso profissional do bem adquirido ou serviço utilizado pela pessoa jurídica que exerce atividade econômica apenas afastará a existência de relação de consumo se tal bem ou serviço compor, diretamente, por revenda, transformação, beneficiamento ou montagem, o produto ou serviço a ser fornecido a terceiros, uma vez que, em tais hipóteses, a destinação não será final, mas intermediária.


Por isso, defende-se que a aplicação do CDC deve ser a mais ampla possível, não importando se a pessoa pretende obter lucro quando adquire o produto ou utiliza um serviço.


2. Tese vencedora. Teoria finalista


Contudo, a tese vencedora no Superior Tribunal de Justiça foi a teoria finalista. No julgamento do Recurso Especial 541.867/BA (J. 10.11.2004), firmou-se o posicionamento de que a aquisição de bens ou a utilização de serviços, “por pessoa natural ou jurídica, com o escopo de implementar ou incrementar a sua atividade negocial, não se reputa como relação de consumo e, sim, como uma atividade de consumo intermediária”.


Para o consumidor ser considerado destinatário econômico final, o produto ou serviço adquirido ou utilizado não pode guardar qualquer conexão, direta ou indireta, com a atividade econômica desenvolvida; “o produto ou serviço deve ser utilizado para o atendimento de uma necessidade própria, pessoal do consumidor” (STJ, Conflito de Competência 92.519-SP, DJ 04/03/2009).


Fica excluído da proteção do CDC o consumo intermediário, assim entendido como aquele cujo produto retorna para as cadeias de produção e distribuição, compondo o custo (e, portanto, o preço final) de um novo bem ou serviço. “Só pode ser considerado consumidor, para fins de tutela pela Lei nº 8.078/90, aquele que exaure a função econômica do bem ou serviço, excluindo-o de forma definitiva do mercado de consumo” (STJ, REsp 2.020.811/SP, DJe 1/12/2022).


Para a corrente finalista deve haver uma total desvinculação entre o destino do produto ou serviço consumido e qualquer atividade produtiva desempenhada pelo adquirente. Isso significa dizer que não são em todas as relações contratuais entre empresas que o Código de Defesa do Consumidor será aplicado.


3. Exceções à teoria finalista


Na legislação consumerista, a definição de consumidor se encontra dispersa em alguns dispositivos: art. 2º, caput e parágrafo único, art. 17 e art. 29, cada um deles se destinando a uma determinada situação em que o consumidor possa se encontrar em relação de vulnerabilidade a um fornecedor, inclusive fazendo equiparações legais.


A jurisprudência evoluiu para uma aplicação temperada da teoria finalista frente às pessoas jurídicas, num processo denominado de finalismo aprofundado, admitindo-se que, em determinadas situações, o adquirente de um produto ou serviço, que o reinsere na cadeia de consumo, seja equiparado à condição de consumidor, por apresentar frente ao fornecedor alguma vulnerabilidade.


Este é o detalhe que pode fazer a diferença na fundamentação da petição: a vulnerabilidade, que se constitui como o princípio-base da política nacional das relações de consumo e que legitima toda a proteção conferida ao consumidor (CDC, art. 4º, I). Essa vulnerabilidade pode ser técnica, jurídica ou fática:[1]


A vulnerabilidade técnica implica ausência de conhecimento específico acerca do produto ou serviço objeto do consumo. No sistema do CDC, ela é presumida para o consumidor não profissional.


A vulnerabilidade jurídica ou científica pressupõe falta de conhecimento jurídico, contábil ou econômico e de seus reflexos na relação de consumo.


Já a vulnerabilidade fática ou socioeconômica abrange situações em que a insuficiência econômica do adquirente o coloca em situação de desigualdade frente ao fornecedor.


O conceito-chave no finalismo aprofundado “é a presunção de vulnerabilidade, ou seja, uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza e enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação de consumo” (STJ AgInt no REsp 1.805.350/DF, DJe 22/10/2019).


Assim sendo, prevalece a regra geral de que a caracterização da condição de consumidor exige destinação final fática e econômica do bem ou serviço. Todavia, a constatação de vulnerabilidade do consumidor dá margem à incidência excepcional do CDC às atividades empresariais.


4. Aspectos processuais práticos nas petições


4.1. Constatação da vulnerabilidade. Alegação da parte interessada


Apesar da jurisprudência do STJ ter aderido à teoria finalista mitigada ou aprofundada, a incidência do Código de Defesa do Consumidor somente ocorre se for demonstrada, no caso concreto, a situação de vulnerabilidade da pessoa (física ou jurídica), razão pela qual, na petição, é necessário que a parte interessada faça a devida alegação e, claro, comprovação da vulnerabilidade técnica, jurídica, fática ou informacional.


Se não ocorrer a provocação jurídica acerca a peculiar situação da pessoa jurídica que a coloca em situação de exagerada inferioridade, o juízo não poderá aplicar, de ofício, as hipóteses que podem excepcionar a regra geral da teoria finalista ou do destinatário final econômico.


Portanto, é incumbência da parte que pretende a incidência do Código de Defesa do Consumidor alegar e comprovar a sua condição de vulnerabilidade.


4.2. Conclusão sobre a vulnerabilidade. Tribunal local


Levando em consideração que a conclusão sobre a vulnerabilidade, ou não, da parte e da aplicação, ou não, da teoria finalista mitigada é amparada na apreciação de fatos e provas constante nos autos, essa conclusão é soberana do Tribunal de segunda instância, pois o recurso especial não comporta o exame de questões que impliquem revolvimento do contexto fático-probatório dos autos, conforme dispõe a Súmula 7 do STJ.


Então, se o Tribunal de origem reconhecer a vulnerabilidade da parte, o Superior Tribunal de Justiça não poderá alterar esse entendimento, uma vez que demandaria reexame da prova dos autos, vedado em recurso especial.


Da mesma forma acontece se o Tribunal não reconhecer a existência de hipossuficiência. “Desse modo, a alteração do desfecho conferido ao processo sobre o tema demandaria análise de conteúdo fático-probatório, circunstância que atrai o óbice das Súmulas n. 5 e 7 do STJ” (AgInt no AREsp 1.667.736/SP, DJe 22/9/2020).



4. Análise de casos práticos


4.1. Costureira X Fabricante de máquinas


No conflito entre uma empresa fabricante de máquinas e fornecedora de softwares para a atividade confeccionista “e uma pessoa física que adquire uma máquina de bordar em prol da sua sobrevivência e de sua família”, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que estava evidenciada a vulnerabilidade econômica, justificando a aplicação das regras de proteção ao consumidor, “notadamente a nulidade da cláusula eletiva de foro” (STJ, REsp 1.010.834/GO, J. 03/08/10).


4.2. Pessoa natural que contraiu empréstimo para atividade produtiva


“A tomada de empréstimos por pessoa natural e jurídica com a finalidade de implementar ou incrementar sua atividade negocial não se caracteriza como relação de consumo, e sim como atividade produtiva” (STJ, REsp 1.348.081/RS, DJe 21/6/2016).


4.3. Pessoa jurídica que contrata operação de crédito


A jurisprudência majoritária adota o entendimento de que a operação de crédito contratada pela empresa para incremento de sua atividade negocial descarta indício de vulnerabilidade de sua parte.


Por isso, como regra geral, “não são aplicáveis as disposições da legislação consumerista aos financiamentos bancários para incremento da atividade negocial, haja vista não se tratar de relação de consumo nem se vislumbrar na pessoa da empresa tomadora do empréstimo a figura do consumidor final prevista no art. 2º do Código de Defesa do Consumidor” (STJ, AgInt no AREsp 1.570.254/SP, DJ 28/4/2023).


4.4. Pessoa jurídica de grande porte que é destinatária final


Em caso de compra de aeronave por empresa administradora de imóveis foi decidido, após análise das provas, que a aeronave foi adquirida para atender a uma necessidade da própria pessoa jurídica (facilitar o deslocamento de sócios e funcionários), não integrando diretamente por meio de transformação, montagem, beneficiamento ou revenda, “motivo pelo qual se aplicam à relação em tela os ditames constantes da lei consumerista” (STJ, Agravo Regimental no Recurso Especial 1.321.083/PR, J. 09/09/2014).


4.5. Empresa que contrata seguro contra roubo/furto de patrimônio próprio


“Se a pessoa jurídica contrata o seguro visando a proteção contra roubo e furto do patrimônio próprio dela e não o dos clientes que se utilizam dos seus serviços, ela é considerada consumidora nos termos do art. 2.° do CDC” (STJ REsp 733.560/RJ, DJ 02/05/2006).


4.6. Investidor ocasional


“O adquirente de unidade imobiliária, mesmo não sendo o destinatário final do bem e apenas possuindo o intuito de investir ou auferir lucro, poderá encontrar abrigo da legislação consumerista com base na teoria finalista mitigada se tiver agido de boa-fé e não detiver conhecimentos de mercado imobiliário nem expertise em incorporação, construção e venda de imóveis, sendo evidente a sua vulnerabilidade. Em outras palavras, o CDC poderá ser utilizado para amparar concretamente o investidor ocasional (figura do consumidor investidor), não abrangendo em seu âmbito de proteção aquele que desenvolve a atividade de investimento de maneira reiterada e profissional” (STJ, Recurso Especial 1.785.802/SP, DJe 06/03/2019).


4.7. Pessoa jurídica que adquire software para aplicação em seu negócio


“O CDC é inaplicável nas hipóteses em que o produto adquirido tenha finalidade de incrementar a atividade empresarial desenvolvida, admitindo-se a mitigação da teoria finalista apenas em hipóteses excepcionais. Contudo, o STJ não tem reconhecido a referida excepcionalidade em caso de aquisição de software pela pessoa jurídica para aplicação em sua atividade empresarial” (AgInt no AREsp 2.132.923/SP, DJe 14/12/2022).


5. Conclusão


A caracterização da pessoa jurídica como consumidora deve ser feita mediante aplicação da teoria finalista, que considera destinatário final somente o destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física ou jurídica.


O Código de Defesa do Consumidor é inaplicável nas hipóteses em que o produto adquirido tenha finalidade de incrementar a atividade empresarial desenvolvida, admitindo-se a mitigação da teoria finalista apenas em hipóteses excepcionais.


A jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça autoriza a incidência do Código de Defesa do Consumidor quando a pessoa, física ou jurídica, embora não seja a destinatária final do produto ou do serviço, apresenta-se em situação de vulnerabilidade ou hipossuficiência.


Em conclusão, não sendo a empresa destinatária final fática ou econômica, admite-se a mitigação da teoria finalista para autorizar a incidência do Código de Defesa do Consumidor nas hipóteses em que a parte se apresentar em situação de vulnerabilidade técnica, jurídica, fática ou informacional, devendo tal condição ser alegada e comprovada pela pessoa interessada na aplicação das normas consumeristas.


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Referências


Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 329.587/SP, DJ 24.06.2002.


Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 541.867/BA, J. 10.11.2004.


Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência 92.519-SP, DJ 04/03/2009.


Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 2.020.811/SP, DJe 1/12/2022.


Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Recurso Especial 1.805.350/DF, DJe 22/10/2019.


Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 1.667.736/SP, DJe 22/9/2020.


Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.010.834/GO, J. 03/08/10.


Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.348.081/RS, DJe 21/6/2016.


Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 1.570.254/SP, DJ 28/4/2023.


Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial 1.321.083/PR, J. 09/09/2014.


Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 733.560/RJ, DJ 02/05/2006.


Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.785.802/SP, DJe 06/03/2019.


Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 2.132.923/SP, DJe 14/12/2022.


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